CAPÍTULO 1 - A
NAÇÃO LAICA, SECULARIZAÇÃO E RELIGIÃO CIVIL NO URUGUAI
1.1 A nação laica
As
diversas abordagens tendentes à elucidação da temática religiosa no Uruguai
(Bayce, 1992; Caetano,1995; Caetano e Geymonat, 1997; Da Costa 1997,1998; Pi
Hugarte, 1993, 1997) tiveram que começar pela recapitulação do processo de
secularização e laicização ocorrido neste país desde meados do século XIX
até as primeiras décadas do presente século Tanto a radicalidade que
caracterizou o mencionado processo,
assim como a sua clara marca no denominado primeiro modelo de identidade
nacional (Caetano, 1992), fazem com que “a nação laica” seja uma dimensão
incontornável para compreender as características
religiosas do Uruguai. Neste capítulo nos propomos
abordar a temática da secularização no Uruguai a partir de dois aspectos inter-relacionados: o primeiro
ligado à concreção da secularização enquanto
laicismo. O segundo alude aos próprios limites dos conceitos de
secularização e laicismo. Os mesmos parecem proceder por carência: a
secularização assinala uma separação mediada por um vazio; a laicidade, um
conjunto de regras idênticas aplicáveis aos diferentes. Esta perspectiva, porém, pode variar quando a laicização
aparece em sua produtividade, quer dizer, quando a entendemos como um dos
aspectos fundantes da religião civil
de uma nação[1]. Estabelecer
que a laicidade é parte constituinte da religião civil uruguaia implica anular
seu atributo de neutralidade, para conceitualizá-la como lugar privilegiado de
representações emblemáticas e mitos que narram a própria nação. Assim como
a laicidade não pode abandonar o campo religioso, tampouco o Estado-nação
pode ser pensado sem considerá-lo como o produtor privilegiado e
regulador da mencionada religião civil. Como
produtor privilegiado - embora não único - da religião civil da nação,
corresponde indagar o processo de secularização levado a cabo pelo Estado-nação
uruguaio enquanto luta simbólica com agentes que promoviam outras instâncias
identitárias baseadas na diferença (opções religiosas, por exemplo), ou nas
pretensões particularistas da citada diferença (uma única religião para um
Estado e uma nação). Antes
de estabelecer as peculiaridades que vinculam a secularização, o laicismo e as
pretensões de uma religião civil encapsuladas no projeto uruguaio de nação,
cabe fazer alguns esclarecimentos. Em
primeiro lugar, admitir que a viabilidade de um processo de secularização não
depende só de um agente. Tratando-se das etapas e resultados de um conjunto de
lutas simbólicas, devemos nos questionar acerca de quais foram as condições
socio-históricas que permitiram a maturação de tal processo e igualmente,
quais eram as posições dos agentes envolvidos no mencionado campo de lutas. Em
segundo lugar, reconhecer que se o Estado-nação uruguaio foi um dos produtores
privilegiados da religião civil, a atual relocalização do campo religioso
uruguaio - seu dinamismo e sua pluralidade - põe em discussão a religião
civil e, consequentemente, a própria
nação laica. Este
trabalho tentará percorrer diferentes temporalidades, reconhecendo que as
ladainhas da religião civil uruguaia não operam como simples sobrevivência de
uma anterioridade, mas são atualizadas em espaços estatais (na escola, por
exemplo) ou nas avaliações e reflexões que acompanham a situação de
símbolos religiosos no âmbito público. Nos fins dos anos 80, quando João
Paulo II visitou o Uruguai pela primeira vez, o governo quis obsequiar sua visita erigindo uma enorme cruz na via pública. As
discussões que naquela oportunidade tiveram lugar no Parlamento não deixaram
de lembrar aquele “jacobinismo”[2] que tanto marcou o país desde o
século XIX até as primeiras décadas
deste século[3]. Os
diálogos transnacionais e o reconhecimento de uma polifonia interna - que
transcende muito além o âmbito religioso - interpelam hoje em dia a religião
civil, deslocando o Estado-nação como agente privilegiado da sua produção e,
inclusive, mostrando as próprias limitações - enquanto almejos abrangentes -
da mesma religião civil. Por outra parte, a admissão de heterogeneidades
religiosas no âmbito público indicam, ao menos, um certo recolhimento do
laicismo e, talvez, a emergência de um projeto de nação atento às
diferenças. Vamos
começar, então, aprofundando as correspondências entre secularização, laicismo, religião civil e nação. Um
interlúdio teórico permitir-nos-á
esclarecer e ligar estas categorias,
úteis sem dúvida, na hora de abordar o processo de construção da
nação laica no Uruguai. A partir da sua gênese, tratar-se-á de mapear suas principais características. 1.2 Interlúdio
sobre secularização, laicismo, religião civil e nação
Vários
autores têm apontado a ambigüidade semântica, a imprecisão e a “...dilatación
peligrosa del concepto de secularización." (Caetano e Geymonat, 1997:25).
De acordo com Guizzardi e Stella (1990) a temática da secularização é
ambígua, na medida em que semanticamente responde a vários significados: ...do
significado originário, extraído do direito canônico e sucessivamente
inserido na teologia, ao significado adquirido na tradição das ciências
sociais, onde indicou (...) fenômenos e acontecimentos que são diferentes não
somente na denominação: laicização, dessacralização, privatização,
descristianização, etc." (Guizzardi e
Stella, 1990:203)[4]. O
rendimento do próprio termo, utilizado pela primeira vez na Paz de Westfalia
(1648) (Guizzardi e Stella, 1990:209), tem sido questionado sob vários pontos
de vista, não sendo menores as críticas esboçadas por aqueles autores que
orientam seus estudos em torno da gênese e da consolidação da idéia da
nação no Ocidente.[5] A
separação entre Estado-nação e religião que, com todas as diferenças e
peculiaridades do caso - de fato, diferenças nacionais[6] - pautam a modernidade ocidental[7], por si mesma não alcança para
definir o fenômeno da secularização. Por outra parte, o olhar analítico em
direção a esse fenômeno pode ser modificado em função “...de la
concepción que se tenga o se postule sobre el fenómeno general de la
religión."(Caetano e Geymonat, 1997:23). Percebe-se
a problemática a partir dos dois exemplos históricos que têm gerado - por
parte das ciências sociais - talvez mais reflexões acerca das relações entre
nação e religião. Referimo-nos ao caso dos Estados Unidos e da França. A
partir das suas respectivas revoluções, ambos surgem como paradigma da
constituição da nação moderna, e tanto num como noutro caso esta
conformação nacional tem sido acompanhada por uma nova cartografia que indicou
um novo desenho do lugar do religioso em relação ao próprio projeto de
nação. Não
deixa de chamar a atenção o fato de ter sido na França - uma espécie de
paraíso da secularização - que Rousseau já minara a divisão entre religião
e Estado, visando, em O Contrato Social, uma religião da nação: Una profesión de fe puramente civil, cuyos artículos de fe corresponde al soberano fijar, no precisamente como dogmas de religión, sino como sentimientos de sociabilidad sin los cuales es imposible ser buen ciudadano ni súbdito fiel. Sin obligar a nadie a creerlas, puede desterrar del Estado a todo el que no las crea; y puede desterrarle, no como impío, sino como insociable. (Rousseau,1957:226).
Este
conceito de religião civil, segundo Llobera, foi utilizado por Rousseau para
“...referirse a una especie de religión que provoca amor al país en sus
ciudadanos y que los fuerza a cumplir con su deber." (Llobera,1994:195) Nesta
nova religião devocional à nação, a função das instituições estatais
devia ser por demais relevante. Em seu Emílio, Rousseau destinava um papel
fundamental à educação: Una
educación que debe dar a los alumnos la forma nacional, y dirigir hasta tal
punto sus opiniones y gustos que sean patriotas por inclinación, por pasión,
por necesidad. Un niño, al abrir por primera vez los ojos, debe ver la imagen
de la Nación y hasta su muerte no debe ver otra cosa que ella. (Rousseau, apud
Rubert de Ventos, 1994:18). Com
a Revolução Francesa, deparamos com a cristalização de uma porção do
pensamento rousseauniano. Apesar das diferenças que se possam estabelecer entre
os diferentes intelectuais “orgânicos” desta revolução, o certo é que a
partir da Assembléia Constituinte de 1789 surge claramente a concepção
moderna de nação e a idéia de nação é imaginável, como afirmara Llobera,
por meio da identificação do povo da França com a própria nação. (Llobera:1994:15). A
partir desta identificação surge um elemento relevante para nossa temática: o
fato de identificar o povo francês com a nação traz no seu bojo a idéia de
indivisibilidade do corpo social. Este princípio de unificação está ligado a
uma concepção centralista de Estado como síntese da mencionada totalidade
social e acima de qualquer tipo de particularidade (religiosa, regional,
lingüística, etc.) Este
aspecto é mais do que importante se considerarmos a heterogeneidade existente
no interior da França: Assim, por exemplo, a França era muito pouco integrada
até o século XVIII na época do reino, tendo este continuado como una colcha
de retalhos de regiões, em vez de uma nação unificada, isto até a
Revolução, ou mesmo, talvez, até bem avançado o século XIX. (Oliven,1992:15). Esta
indivisibilidade - uma nação, um Estado - reflete claramente as aspirações
rousseaunianas, presentes, também, no pensamento tão oposto de
revolucionários como Robespierre ou Danton (Llobera, 1994, 249-250). A
nação não somente devia conformar uma totalidade formal mas também
espiritual. Os limites e a dualidade da Revolução Francesa - neste aspecto -
parecem marcar, como veremos, as características do seu processo de
secularização, bem como promover uma redefinição do mesmo. Além
de reconhecer que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 27 de
agosto de 1789 permanece na dualidade de uma vocação universalista e de um particularismo nacionalista, ela mesma
vai inaugurar um outro aspecto: permitir a cristalização de um sujeito - o
cidadão - emancipado e com capacidade de decisão e resolução (habitado pela
própria razão) ao tempo que decreta a
existência da nação mesma. No
artigo 3 encontramos: "Le principe de toute souveraineté réside
essentiellement dans la nation; nul corps, nul individu ne peut exercer
d´autorité qui n’en émane expressément.”(Declaration des droits de l’
homme et du citoyen, 1957).[8] Assim
sendo, como aponta Dumont, individualismo e nação não são
contraditórios: “A nação é precisamente o tipo de sociedade global
correspondente ao reinado do individualismo como valor.” (Dumont,1992:21). Porém,
a imagem do cidadão - momento relevante do individualismo moderno - nos coloca frente
aos paradoxos que a própria Revolução trouxe. Se, por um lado, este cidadão
possuía liberdade para defender e sustentar suas crenças de diversos tipos,
por outro, ele mesmo fazia parte de uma totalidade: produto e produtor da
nação. A nação devia ser sua religião primeira, além do cultivo de
religiões “privadas”[9]. Así,
reconoce Bellah, la Revolución francesa, anticlerical hasta el meollo, intentó
establecer una religión civil anticristiana. Desde entonces el abismo entre la
tradición católica francesa y la establecida por el laicismo militante
iniciado en 1789, y que había de culminar con el culto jacobino al Ser Supremo
ha sido considerable… (Giner,1994:144). [10] A
secularização, no caso francês, parece preferentemente assumir a procura da
sacralização da própria Revolução por meio de representações
emblemáticas que cristalizassem a identidade da própria nação. A
laicização foi, portanto, a forma mais ou menos visível da nação, seja por meio da presença de representações
emblemáticas ou porque o tal espaço “neutral” deve sua neutralidade
justamente a um pacto anterior: assumir que ele mesmo existe pelos ideais
estabelecidos por uma nação (liberdade, igualdade, fraternidade). Logo, o
próprio conceito de secularização põe- se em jogo: como assumir que a
secularização implica a separação entre Estado e expressões religiosas,
quando o Estado revolucionário se dedica a estabelecer uma religião civil e a
se opor fervorosamente às expressões religiosas estabelecidas? Estamos
referindo-nos à simbologia, cultos e celebrações revolucionárias. No auge revolucionário, a nação francesa
passou a ser adorada por meio de: ...muchos de los símbolos (que) tenían un origen grecorromano o masónico. El tricolor, combinando el rojo y el azul de la ciudad de París con el blanco de los Borbones, se hizo popular en poco tiempo y se convirtió en oficial en 1792. Otro símbolo que se propagó rápidamente fue el altar patriótico, que fue erigido espontáneamente en muchas aldeas y comunas y se hizo obligatorio en 1792(...) Las tablas de la Declaración de los Derechos (en piedra o en metal) eran llevadas en procesión como si fueran el Santísimo Sacramento (...) A partir de 1790 aparecieron los árboles de la libertad (...) También existían otros símbolos como las fasces romanas, los gorros frigios, etc. (Llobera,1994:247).
De acordo com
o autor citado, “…se agregaban celebraciones y festividades específicas,
que rememoraban las distintas etapas heroicas de la Revolución.” (Llobera,1994:247). Contudo,
não caberia esperar somente do Estado uma glorificação da nação. Também
por parte da sociedade civil[11] - categoria diferenciada de “sociedade
política” com relativa claridade a partir justamente desta revolução -
realizava-se uma série de atividades em torno à adoração da nação (a
citação acima espelha em parte este fato).Assim, a religião civil era, pelo
menos nos inícios do idílio revolucionário, produzida
pelo Estado e pela própria sociedade civil. Estes
elementos bastam para caracterizar alguns dos aspectos do lugar do religioso na
França Revolucionária:
a dimensão religiosa foi re-apreendida pelo conjunto de símbolos e
representações emblemáticas da própria nação. O caráter “sagrado”
desse tal empenho obstaculiza o uso do termo secularização pois bem
poderíamos afirmar que essa sacralidade fora transplantada a outro “locus”
social. Esta afirmação não pode nos levar, porém, a substancializar o
sagrado, no sentido de uma continuidade durkheimniana de eterna produção de
evangelhos: “Não há evangelhos que sejam imortais e não há razão para se
acreditar que a humanidade seja doravante incapaz de conceber outros.” (Durkheim,1989:506). A
visão durkheimniana de expressão simbólica de totalidades (e o que ela é
senão a “auto-idolatrização” da sociedade e as representações que traz
consigo?) pode ser útil, em parte, se for “violentada” e se for entendida
como luta simbólica e particularmente como uma luta de classificações (no
sentido outorgado a este termo por Bourdieu por possuir o monopólio de expressar
simbolicamente a totalidade. Segundo
Bourdieu: Sabe-se que os indivíduos e os grupos investem nas lutas
de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a idéia que eles
têm deles próprios, todo o impensado pelo qual eles se constituem como `nós´
por oposição a `eles´, aos `outros´ e ao qual estão ligados por uma adesão
quase corporal. É isto que explica a força mobilizadora excepcional de tudo o
que toca à identidade. (Bourdieu, 1998:124). A
relação entre nação e religião para o caso francês dos fins do século
XVIII pode ser analisada no contexto desta luta de classificações acerca de
quem enuncia esta totalidade em construção que era a nação emergente. Esta
luta de classificação, luta simbólica, com seu correlato político e
econômico[12],
expressa-se, por meio de representações e práticas que têm justamente
como objetivo possuir o monopólio de enunciar e representar a totalidade
imaginada da nação, ou seja, uma comunidade imaginada[13]. Lembremos a importância que
atribui Bourdieu às representações mentais e objetais, assim como aos atos
“mágicos” de identificação e auto-identificação das entidades regionais, étnicas e nacionais (Bourdieu,1998:112,113).[14] Toda
esta simbologia da religião civil, suas manifestações e atos deveria ser
observada como tentativa de substituição do catolicismo imperante por meio da
construção de um “nós” que era a enunciação inicial da nação. As
representações emblemáticas da nação eram a representação da totalidade,
e nenhuma outra simbologia particular devia preponderar. Se
há algo de sacralidade neste processo não é porque há na sociedade uma
dimensão sempre emergente do sagrado, mas porque deve-se basear no fato de que
a mencionada religião civil tendia -
de forma contraditória e ambivalente - a
se postular
ao mesmo tempo como representação emblemática de uma totalidade de
indivíduos e de ser significativa para todos eles. Sob este ato de imposição
(mesmo tratando de uma maioria revolucionária), a nação torna-se, assim, não
somente uma associação político-territorial, mas uma “comunidade espiritual”. Se
a religião civil é religião da nação tentando se mostrar como
representação de uma totalidade, se as suas ânsias comunitárias
levam-na a zelar outras fidelidades particulares, se é preciso aprender a
amá-la nas escolas, então enfrenta-se, desta forma, com a limitação
do próprio sujeito que a gestou: o cidadão. Logo
deparamos com que os atributos dados a este sujeito e as liberdades conferidas
ao mesmo, oferecem a possibilidade de escolher a sua fé. A religião civil,
neste sentido, oscila entre sua imposição total ou entre sua forte presença
no âmbito público, deixando expressões de “fidelidades” secundárias para
o âmbito privado. É
assim que o conceito de secularização pode ser admitido. Se o processo de
secularização na França torna-se inteligível, não é tão-somente pela
separação Estado-nação e religião, senão pela diferenciação e
separação entre religião pública e privada. Vejamos a respeito a opinião de
Enrique Gil Calvo: ...la
primera diferenciación, aquella más esencial en la que precisamente consiste
el proceso de secularización, es la que distingue y separada la religiosidad
pública de la religiosidad íntima o privada. En efecto, la secularización implica la progresiva privatización de la esfera de lo religioso,
que de ser oficialmente pública pasa a hacerse eminentemente privada. Y bien, ¿acaso no es esta fractura
entre lo público y lo privado lo que más caracteriza e identifica a la
irrupción de la modernidad? ( Gil Calvo, 1994:174). Estaríamos
de acordo se reafirmássemos que a religião pública é a religião civil da
nação e que o âmbito público é reafirmado justamente a partir da herança
dos valores da religião civil francesa (liberdade, igualdade, fraternidade),
sem o qual seria basicamente inimaginável e socialmente impossível. Também
deveríamos acrescentar a esta versão do conceito de secularização, a
inevitável transversalidade entre “religião pública” e “privada”,
transversalidade que opera, por outro lado, entre âmbito público e privado[15]. Embora
o modelo secularizador francês - de religião civil da nação e de
privatização de outras dimensões religiosas - não tenha afetado
eventualmente a maioria da população francesa, e sua exposição mais radical
tenha durado poucos anos, teve, porém, uma profunda influência na própria
França assim como no exterior. Como veremos, as características deste modelo
irão imperar mais fortemente no processo de secularização uruguaio. Outro
exemplo, como dizíamos, das peculiares relações entre nação e religião,
apresenta-se para o caso norte-americano. É a partir dos Estados Unidos que se
torna a redimensionar as categorias de religião civil e secularização,
surgindo a primeira já não como posição e imposição simbólica que tenta
em grande parte substituir as religiões existentes (caso da religião civil francesa), senão que se apropria e toma seus valores e
simbologia da religião fundante, embora os dilua enquanto simbologia e valores da nação Vemos
aqui que, embora a religião civil continuasse sendo religião da nação, suas
características mudaram: trata-se neste caso da re-significação de
representações (representações que participam em princípio do corpus da
religião fundante e ao mesmo tempo da nação) e valores religiosos que, mesmo
separados da sua origem denominacional, sobrevivem como valores da nação. A
formulação de Bellah (1970, 1975) em torno das relações de nação e
religião, segue percursos similares ao exposto. Para
Bellah, a religião civil conforma: “…esa dimensión religiosa que se
encuentra en la vida de todo pueblo, a través de la cual éste
interpreta su experiencia histórica a la luz de una realidad
trascendente." (Bellah, 1975:3)[16]. A
diferença de configuração entre a
religião civil francesa e a americana, dever-se-ia a que, no caso desta última, sua configuração
não seria anticlerical: The
American civil religion was never anticlerical or militantly secular. On the
contrary, it borrowed selectively from the religious tradition in such a way
that the average American saw no conflict between the two. In this way, the
civil religion was able to build up without any bitter struggle with the church
powerful symbols of national solidarity and to mobilize deep levels of personal
motivation for the attainment of national goals.” (Bellah, 1970:
180-181). É
assim que, no caso do processo de secularização norte-americano, não haveria
tentativa de substituição e de rompimento com o passado religioso: Esta
adoptó una forma que era relativamente consistente con las concepciones y definiciones cristianas tradicionales, y
esto es lo que constituye el núcleo de lo que Bellah llama religión civil
americana. No hubo ruptura radical con la herencia religiosa primaria, aunque se
evitó cuidadosamente toda tentativa de definir la nueva religión civil como
cristiana en un sentido dogmáticos específico. (Habermas, 1987:411). A
leitura da existência desta religião civil americana podia (e pode) ser
rasteada por meio dos discursos oficiais que faziam referência ao
Todo-poderoso, ou ao Bem Supremo, além da existência e utilização de
símbolos religiosos na via pública. Nesta religião civil, também
encontrar-se-iam traços de: "...la vida futura sobrenatural, el
castigo del vicio, la virtud recompensada, la exclusión de la intolerancia
religiosa y otros temas semejantes..." (Giner,1994:143). A
religião civil norte-americana - simbologia e princípios religiosos que se
tornam nacionais - reformula a temática da secularização desde uma
perspectiva pos-weberiana. Com
efeito, segundo Habermas, tanto quanto para Parsons (1978) como para Bellah
(1970), a mundialização ou desconfeccionalização parcial de valores e
simbologia religiosa, não fazem sua perda, na medida em que: "..las
orientaciones valorativas secularizadas no se disocian necesariamente del suelo
religioso." (Habermas, 1987:411) ou passam a ser entendidos como dimensões
valorativas da nação. No primeiro caso, com uma perspectiva estritamente
denominacional, teríamos a “secularização dos conteúdos de fé” : Para
Parsons, la secularización de los contenidos de la fe significa una
desdogmatización que permite a las confesiones empeñadas antaño en una
rivalidad a vida o muerte coexistir sobre la base de convicciones éticas
compartidas. En este sentido, la secularización comporta y fomenta una
generalización de los valores con la que adquiere continuidad el proceso de
realización social de los valores... (Habermas, 1987:412). Este
evento, por uma parte, tenderia ao ecumenismo interdenominacional, ao mesmo
tempo que colaboraria com a gestação
de “uma comunidade macro”, onde a persistência de valores religiosos
(liberados das suas fidelidades denominacionais) passa a ser uma “linguagem
comum” da sociedade. Embora
Habermas, ao analisar Bellah e Parsons, apenas faça o esboço da temática da
nação, (mesmo que em ambos a referência à religião civil e à nação seja
importante) parece óbvio que, sem deixar de levar em conta a “secularização
denominacional”, o reservatório dos mencionados valores é a religião civil
da nação. Não
se trata, porém, de uma espécie de “garantia” da nação, nem da sua “auto-idolatrização”,
mas dos próprios princípios morais que a transcendem e pelos quais: "...
la nación debía de ser juzgada conforme al cumplimiento de esos
principios." (Llobera, 1994:196). Um
outro aspecto das visões acerca da secularização norte-americana tem a ver
com a privatização do religioso, tópico similar ao exposto quando falávamos
da secularização na França. A diferença, porém, parece residir mais na
construção do âmbito público que, no caso dos Estados Unidos, não fez
abstração de valores e conteúdos religiosos confessionais, mas os
desdogmatizou, ou seja, tornaram-se instâncias da nação.[17] Das
análises acerca da secularização norte-americana pode-se extrair alguns itens
úteis para estudar o modelo uruguaio: a secularização dos conteúdos de fé,
seja pelo motivo que for, deve estar
presente na medida em que se trata de uma secularização confessional ou
denominacional com efeitos sociais. Por
outra parte, a privatização do culto denominacional, não indica uma ausência
de “moralização” do âmbito público. Ao contrário, essa moralização encontra-se presente nos princípios da religião
civil. Como
já apontamos, o modelo de secularização do Uruguai terá mais influência da
França do que dos Estados Unidos, sobretudo pelo próprio contexto de
formação do Estado-nação uruguaio. Tratar-se-á, para o caso uruguaio, mais
de uma religião civil substitutiva, do que de uma religião capaz de assimilar
e fazer ingressar no âmbito público parte das tradições presentes em
confissões religiosas. Passemos,
então, à revisão da “nação laica” uruguaia. [2] Segundo Girardet o jacobinismo (uma das tantas correntes dentro da movimentada Revolução Francesa) teria estado possuido por uma “…voluntad de reunión, de unificación, de eliminación de todos los factores individuales o colectivos de diversidad (…) “No dejaremos ningun cuerpo heterógéneo en la República” había proclamado en el Club de los Jacobinos(..) el delegado Garnier.”(Girardet,1999:141). Para o caso uruguaio, o termo “jacobinismo” foi recuperado por José Enrique Rodó perante a decisão do estado uruguaio de retirar as imagens religiosas dos hospitais (1906). Rodó, questionando esta decisão, apontou que se tratava de uma atitude mais vinculada ao espírito jacobino do que ao liberal : “¿Liberalismo? No, digamos mejor jacobinismo. Se trata, efectivamente, de un hecho de franca intolerancia y estrecha incomprensión moral e histórica, absolutamente inconciliable con la idea de elevada equidad y de amplitud generosa que va incluida en toda legítima acepción del liberalismo…”(Rodó, 1930: 123-124).
[3] Após longas discussões, o Senado e a Câmara de Representantes aprovaram a ereção da Cruz que provisoriamente havia sido colocada para homenagear o Papa. O texto da lei aprovada, a propósito de manter a polêmica Cruz, e assinado pelo vice-presidente da República Dr. Enrique Tarigo (que votou contra sua permanência) foi o seguinte: “Ley 15.870. El senado y la Cámara de Representantes de la República Oriental del Uruguay reunidos en Asamblea General DECRETAN: Artículo 1º.- Dispónese que la cruz eregida con motivo de la visita a la ciudad de Montevideo del Papa Juan Pablo II, sea mantenida en su emplazamiento original y con carácter de permanente en calidad de monumento conmemorativo de dicho acontecimiento. Art. 2º. Comuníquese, etc. Sala de Sesiones de la Cámara de Representantes, en Montevideo, a 11 de junio de 1987. Víctor Cortazzo, Presidente- Héctor S.Clavijo, Secretario. Cúmplase, acúsese recibo, comuníquese, publíquese e insértese en el Registro Nacional de Leyes y Decretos. Tarigo- Julio Aguiar.” (Diario de Sesiones de la Cámara de Representantes , Tomo 68, Diario 40 (:542-596), mayo/junio de 1987; Diario de Sesiones de la Cámara de Senadores, Tomo 305 (:391-433), marzo/mayo de 1987.)
[4] Por seu turno, Marramao a respeito do conceito de secularização, estabelecerá seguinte: “Secularização é uma metáfora. Surgida na época da Reforma, originariamente em âmbito jurídico (para indicar a expropriação dos bens eclesiásticos em favor dos príncipes ou das igrejas nacionais reformadas), a palavra veio a conhecer, ao longo do século XIX, uma notável extensão semântica: primeiramente, no campo histórico-político, em seguida à expropriação dos bens e dos domínios religiosos fixadas pelo decreto napoleônico de 1803(...) e posteriormente no campo ético e sociológico, quando assume (...) o significado de categoria genealógica capaz de conter em si o sentido unitário da evolução histórica da sociedade ocidental moderna (seja em Tönnies ou em Weber -embora como acentuações profundamente diversas - “secularização” indica a passagem da época da comunidades à época da sociedade, de um vinculo fundado na obrigação a um vínculo fundado no contrato, da “vontade substancial” à “vontade eletiva”. (Marramao,1995:29-30).
[5] Sobre a possibilidade de conceber a
nação em sociedades precapitalistas não ocidentais, ver Amin, Samir (1978).
[6] Como já indicáramos, pode-se
colocar para o caso uruguaio a concretização da secularização enquanto laicismo
e “romper” com sua ilusão de neutralidade em troca de considerá-lo como
religião civil da nação uruguaia. Este é então, um caso específico. Sobre a
pluralidade de modalidades de secularizações que ocorrem em diferentes cenários
nacionais ver: Martin (1978). Ver também Martin (1990) para o modelo americano
de religião emocional nos Estados Unidos e o pentecostalismo na América Latina.
[7] Lembremos que, segundo Habermas, o termo “moderno” remete em sua utilização latina ao século V : “...modernus se empleó por primera vez a finales del siglo V para distinguir el presente, que se había convertido oficialmente en cristiano, del pasado romano y pagano.”(Habermas, 1994:.87) Para definir o projeto moderno, Habermas retoma a tese weberiana acerca da modernidade cultural. Segundo Habermas, “...Weber caracterizó la modernidad cultural como la separación de la razón sustantiva expresadas en la religión y la metafísica en tres esferas autónomas. Estas son la ciencia, la moralidad y el arte. Estas llegaron a diferenciarse porque las concepciones unificadas del mundo de la religión y la metafísica se desmembraron.”(Habermas, 1994: 94). Também referindo-se em parte à
modernidade e a estas esferas autônomas, Pierucci dirá em torno à religião :
“...a religião literalmente perdeu o lugar já na Europa do século XVIII - época
da “Grande Transformação” (...)após a perda de espaço e o poder no aparelho do
Estado laicizado, que implicou a perda material de uma série de bens e domínios
eclesiásticos(...) vieram a galope a perda de chão ou de raízes na sociedade
societalizada e a perda de alcance sobre a pluralização das esferas culturais
autonomizadas; e daí, a perda de influência no espaço público.”(Pierucci,
1997:104).
[8] Ver: Declaration des droits de l’ homme et du citoyen. Montevideo, Facultad de Humanidades y Ciencias, Universidad de la República, 1957.
[9] “A elaboração da “religião civil”
era assim uma solução de compromisso entre o engajamento e a lealdade ao novo
grande Ente político (...) e a preservação da área da liberdade individual, da
esfera do privado.”(Dias Duarte,1983:19).
[11] Considerando a enorme quantidade de acepções deste termo, utilizo a definição de sociedade civil estabelecida por Giner: “... una esfera, desarrollada históricamente, de derechos individuales asociaciones voluntarias, en la cual la pacífica competición política de los individuos y de los grupos en defensa de sus diversos intereses, intenciones y preocupaciones está garantizado por el Estado.” (Giner, 1985:73).
[12] Nesta breve revisão da secularização francesa estamos fazendo abstração de interesses, classes e grupos que estão disputando em pleno processo revolucionário. Visto que a religião civil francesa entra em choque com a religião católica, parece tentador retomar o esclarecimento de Bourdieu sobre as guerras religiosas: “Em suma, as guerras religiosas não são “violentas querelas teológicas” com em geral são consideradas, nem conflitos de “interesses materiais de classe” da maneira com que Engels as encara. Na verdade, as guerras religiosas são duas coisas ao mesmo tempo porque as categorias teológicas de pensamento tornam impossível pensar e levar adiante a luta de classes enquanto tal, permitindo não obstante, pensá-las e lavá-las a cabo enquanto guerra religiosa.” (Bourdieu, 1992:47).
[13] “Así pues, con un espíritu antropológico
propongo la definición siguiente de la nación: una comunidad políticamente
imaginada como inherentemente limitada y soberana. Es imaginada porque aun los
miembros de la nación más pequeña no conocerán jamás a la mayoría de sus
compatriotas, no los verán ni oirán siquiera hablar de ellos, pero en la mente
de cada uno vive la imagen de su comunión.” (Anderson, 1997:23).
[14] “... a procura dos critérios
“objetivos” de identidade “regional” ou “ étnica” não deve fazer esquecer que, na prática social, estes
critérios (por exemplo, a língua, o dialeto ou sotaque) são objeto de
representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação , de
conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem o seus interesses e
os seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas (emblemas,
bandeiras, insígnias, etc.) ou em atos, estratégias interessadas de manipulação
simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros
podem ter destas propriedades e dos seus portadores.” (Bourdieu, 1998:112) “O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas propriamente simbólicas (...) em que está em jogo a conservação ou a transformação das relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas, tanto econômicas como simbólicas; ou, se prefere, a conservação ou a transformação das leis de formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objetivas ou intencionais) da identidade social. Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes empenham interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo.” (Bourdieu, 1998:124).
[15] “En este sentido, se ha destacado que la definición de los límites entre lo público y lo privado se construye históricamente, dando lugar a variaciones culturales y políticas de un amplísimo espectro que no pueden ser contenidas en forma adecuada dentro de un esquema rígidamente universalista y casi invariante.” (Barrán; Caetano; Porzekanski, 1996:23).
[16] Dada a importância da definição,
fizemos esta tradução livre, que continuaremos a utilizar sucessivamente.Ver
original: Bellah, Robert N. The Broken Covenant. Nueva York, Seabury Press, 1975.
[17] Por que é que se podem considerar
aportes pos-weberiano relevantes os de Bellah (1970,1975) e Parsons (1978)? A
saída da A
ética protestante e o espírito do capitalismo (Weber, 1967), é o
triunfo da racionalidade instrumental. A partir, não obstante, da
conceitualização de Bellah (1970,1975) e Parsons (1978), a desdogmatização dos
conteúdos de fé exprimidos num “terreno comum” (religião civil) promoveriam a
emergência de uma racionalidade substantiva. Ver: Weber, Max (1967);
Bellah, Robert N. (1970;1975); Parsons,T.(1978). |